sexta-feira, março 16, 2007

"Quem dá sangue tem mais benefícios do que quem dá órgãos"

Um dador de sangue tem isenção de taxas moderadoras, pode ter prioridade na marcação de consultas, um dador de rim ou fígado não tem qualquer tipo de benefício, critica Margarida Carvalho, médica do Hospital de Torres Novas que em Setembro de 2004 doou 60 por cento do seu fígado ao seu filho de 13 anos.

As pessoas que dão parte do seu fígado a um familiar têm que ficar em períodos até dois meses em repouso absoluto. No caso de Margarida nem sequer o seguro de vida lhe serviu de nada, porque não tinha sofrido 'um acidente', nem a doação era considerada 'uma doença'.
A médica sublinha que existem também outro tipo de distorções: enquanto um doente com um transplante renal não paga medicamentos, os que recebem um fígado pagam-nos e os chamados medicamentos 'imunosupressores' (que evitam a rejeição do órgão) têm que se tomar toda a vida, nota.
Dulce Pitarma, assistente social no Hospital Pediátrico de Coimbra, confirma e lamenta esta situação e diz que as famílias em que um familiar doa parte do seu órgão têm grandes dificuldades em comprar a medicação. Num dos casos que está a acompanhar, a despesa mensal é de cerca de 230 euros por mês.
À despesa junta-se ao facto de os dois pais - o que doa e o que tem que ficar a tomar conta da criança - terem que ficar meses de baixa. Na sua opinião, devia haver 'um subsídio de dador vivo' por um período de dois a três meses, tal como, por exemplo, funciona uma licença de maternidade.
Problemas à parte, Margarida Carvalho diz que a doação de órgãos por familiares 'tem que ser desmistificada. Não é nenhum bicho de sete cabeças. Pode-se ficar com uma vida normal', como foi o seu caso. Há familiares que não doam parte do seu fígado 'por ignorância ou por medo do desconhecido. Todos os dadores de fígado estão vivos e de saúde', reitera.
Em Portugal não há mortes de dadores a registar até à data. Mas noutros países sim. Os japoneses, que são 'campeões' em intervenções com dadores vivos, tiveram 'mil transplantes sem mortes', lembra o cirurgião reformado dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) que foi pioneiro no transplante renal e hepático, Linhares Furtado. Até que 'ao 1001º aconteceu', nota.
A doação de dadores vivos está limitada a familiares até ao terceiro grau. Se um marido quiser doar um rim ou parte de um fígado à mulher, a lei portuguesa não o permite. A proposta de lei que pretende acabar com esta restrição está desde o ano passado na Assembleia da República. A presidente da Comissão Parlamentar de Saúde, Maria de Belém, espera que seja aprovada ainda antes de o Parlamento parar para férias de Verão.
'Se há meia dúzia de anos os transplantes de dador vivo representavam três a quatro por cento do total, agora já se vai nos 10 por cento', refere Linhares Furtado. Aumentar o número de transplantes com dador vivo 'depende das pessoas, não dos cirurgiões', defende. Apesar de estar longe das médias dos países escandinavos (onde estes chegam a ser superiores ao de dador morto), Linhares Furtado diz que estamos no bom caminho.
A pedido do Parlamento, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) pronunciou-se no ano passado a favor do fim das actuais limitações da lei portuguesa - desde que haja uma relação próxima, afectiva e estável entre o dador e o receptor de órgãos. O objectivo é evitar práticas de comércio de órgãos. O CNECV entende que deve ser constituída uma entidade de verificação e admissibilidade de colheita para transplante.
Mas, mesmo quando a limitação for levantada, o presidente da Organização Portuguesa de Transplantação (OPT), Manuel Abecasis, não julga que as doações obtidas desta forma sejam significativas. 'Pode haver meia dúzia.' Morais Sarmento, presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação, também acredita que a mudança da lei não leve à subida 'espectacular de doações'.
A situação de doação mais frequente, no caso dos rins, é a mãe a doar um dos rins. 'As mães são mais disponíveis', afirma Alfredo Mota, responsável pela Unidade de Urologia e Transplantação dos HUC. A doação de medula óssea é uma situação diferente, porque não implica intervenção cirúrgica. Há 75 mil voluntários, o que coloca Portugal no quarto lugar da Europa, afirma Manuel Abecasis. Estes 'resultados extraordinários' devem-se ao mediatismo adquirido pela questão devido 'ao empenho de Duarte Lima' e à dotação de verbas pelo Ministério da Saúde para estudos de dados. A avaliação de cada doador custa cerca de 150 euros, informa o presidente da OPT." (Catarina Gomes, com Alexandra Campos - Público, 15/03/2007)

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