quinta-feira, março 22, 2007

"Lesões no cérebro geram escolhas morais anormais"

"A equipa do neurocientista António Damásio quis saber se as emoções são ou não essenciais ao funcionamento do nosso eu moral
Você sabe que uma dada pessoa tem sida e que tenciona deliberadamente infectar outras. Algumas dessas pessoas irão com certeza morrer. As duas únicas opções que você tem são deixar que isso aconteça ou matar a pessoa. Você carrega no gatilho?
A mera hipótese de virmos a ser confrontados com uma escolha destas, mesmo que retoricamente, provoca-nos arrepios, tal é a nossa aversão natural à ideia de tirar a vida a outro ser humano. No entanto, há pessoas que respondem pela afirmativa quando este cenário imaginário lhes é colocado. E essas pessoas, que basicamente não hesitariam em obliterar uma vida humana 'em nome do bem colectivo', apresentam lesões numa região do seu cérebro necessária à produção de emoções.
António Damásio, da Universidade da Califórnia do Sul (USC), Marc Hauser, especialista do comportamento animal da Universidade de Harvard, e os seus colegas quiseram saber o seguinte: perante um dilema moral deste género, será que os sentimentos que nos acossam são somente uma consequência do horror da situação evocada? Ou será, pelo contrário, graças ao nosso cérebro 'emocional' que somos capazes de fazer a escolha moral mais humana - a menos utilitária e fria -, recusando-nos a entrar na pele de um homicida justiceiro?
Para Damásio, autor do célebre livro O Erro de Descartes, a razão humana precisa das emoções para funcionar: não há escolha racional acertada na vida real sem a participação das emoções, da intuição, das nossas vísceras. Quanto a Hauser, autor de um recente livro intitulado Moral Minds: How Nature Designed Our Universal Sense of Right and Wrong, tem estudado nos animais os comportamentos precursores dos comportamentos morais humanos.
Estes cientistas concluem hoje, num artigo publicado na revista Nature, que as emoções desempenham efectivamente um papel essencial no nosso desempenho moral. Sem elas, o nosso juízo moral não funciona. 'O nosso trabalho fornece a primeira demonstração causal do papel das emoções nos juízos morais', diz Hauser, citado por um comunicado conjunto da USC, da Harvard e do Caltech.
Os investigadores apresentaram uma série de 13 dilemas morais deste tipo a 30 pessoas de ambos os sexos. Desses voluntários, seis tinham lesões no córtex prefrontal ventromedial (VMPC), 12 tinham outras lesões cerebrais e 12 não tinham lesões. O VMPC, situado ao nível da testa, faz parte dos circuitos 'emocionais' do cérebro.
Embora o dilema referido mais acima não fizesse parte do conjunto sob essa forma, algumas das escolhas propostas eram talvez mais arrepiantes ainda. Por exemplo: 'Soldados inimigos invadiram a sua aldeia. Você e outros refugiam-se num sótão [...] O seu bebé começa a chorar. [...] Você tapa-lhe a boca. [...] Para salvar a sua própria vida e a dos outros você precisa de matar o seu filho por asfixia. Você asfixiaria o seu bebé para salvar a sua própria vida e a dos outros?'
Também foi pedido aos participantes para responderem a outros tipos de dilemas - uma série de dilemas morais menos pessoais e uma série de dilemas sem componente moral. Mas foi apenas perante os dilemas morais em que a morte imediata de alguém serve para evitar a morte futura de muitos que as diferenças entre as pessoas com lesões no VMPC e as outras se tornaram gritantes, com uma proporção significativamente mais elevada de respostas afirmativas, neste grupo, à resolução dos dilemas pelas armas, por assim dizer.
'O que é absolutamente espantoso', acrescenta Hauser, 'é a selectividade deste défice. As lesões do lóbulo frontal deixam intactas toda uma série de capacidades na resolução de problemas morais, mas afectam os juízos nos quais uma acção que provoca aversão é colocada em conflito directo com um desfecho fortemente utilitário'. Por seu lado, Ralph Adolphs, do Caltech, explica: 'Devido às suas lesões cerebrais, [as pessoas com lesões no VMPC] apresentam emoções anormais na vida real. Falta-lhes empatia e compaixão.'." (Ana Gerschenfeld - Público, 22/03/2007)

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